17/09/2022

UM GOSTINHO DO MESTRADO

A aventura de escrever uma dissertação, uau... Para fazer o mestrado eu inventei o Projeto Tchaikovsky, que foi uma espécie de loucura necessária, algo que acabou por ser maior do que um mestrado exigia, que parecia maior do que eu poderia dar conta, talvez até um exagero, mas que me mostrou muitas direções para onde era necessário olhar. Acho que não preciso escrever muito sobre os processos de estudo e de escrita porque tem um monte de diários de estudo que contam o que foi esse caminho de reestudar o Concerto pra Violino de Tchaikovsky e a dissertação em si que conta as várias descobertas que vieram com a análise desses diários. Para dar um gostinho, copio aqui a Introdução da dissertação.

INTRODUÇÃO

Escrevo diários de estudo desde 2005, mas a primeira vez que elaborei um diário detalhando a utilização de técnicas para abrandamento da Ansiedade de Performance Musical (APM) na preparação de um repertório específico foi no trabalho de conclusão da disciplina “Técnicas de Reeducação Corporal e Técnicas de Abrandamento de APM”, ministrada pelos Professores Robert Suetholz e Amilcar Zani na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) em 2017. Tanto a aplicação consciente e regular das técnicas aprendidas em aula quanto a escrita do diário se mostraram excelentes ferramentas de aperfeiçoamento e acompanhamento e incitaram a elaboração do projeto de pesquisa que culminou na presente dissertação de mestrado.

Há anos meu interesse pela relação entre ansiedade de performance, saúde do músico e maneiras de estudar cresce a passos largos. As pesquisas das últimas décadas sobre esses assuntos os relacionam cada vez mais e alimentam não apenas a minha curiosidade, mas também a de inúmeros músicos. Interessante notar que muitas vezes essas pesquisas não são desenvolvidas na área musical. Nós as emprestamos da Psicologia, Psicologia do Esporte, Neurociência, Neuroeducação, Fisiologia e Anatomia, que são apenas algumas das áreas do conhecimento que conversam intimamente com o fazer artístico.

Além das recentes pesquisas, muitas atividades extra-curriculares foram consideradas aliadas dos músicos em suas questões físicas e mentais ao longo do último século. Para citar algumas: Ioga, Técnica de Alexander, Método Feldenkrais, Eutonia, meditações diversas, Fisioterapia, Rolfing, Quiropraxia, Reeducação Postural Global (RPG), Acupuntura, Tai Chi Chuan, Pilates. Mais recentemente há campos de estudo com atividades que abordam questões mentais, como a Programação Neurolinguística (PNL) e Psicologia da Performance, esta última criada originalmente para o mundo dos esportes e hoje em dia bastante assimilada pelo mundo da música, sobretudo nos Estados Unidos e Canadá. Tanto a PNL quanto a Psicologia da Performance utilizam, principalmente, conhecimentos da Neurociência.

Das atividades citadas, a maior parte requer a presença de um profissional de saúde ou instrutor e são realizadas separadamente do estudo musical. Contribuem para a melhora e manutenção do corpo que toca o instrumento, fornecendo consciência corporal, mas não necessariamente ferramentas de estudo. Já a Técnica de Alexander e a Psicologia da Performance são áreas de estudo e/ou atividades que podem ser utilizadas no estudo do instrumento em si. A Técnica de Alexander é aprendida com professor em aula individual ou às vezes em grupo, assim como a Ioga, mas também fornece ferramentas para o estudo do instrumento, que abordam o complexo corpo-mente com enfoque mais físico, com maior presença e sensação do corpo. A Psicologia da Performance fornece ferramentas que focam mais nos aspectos mentais, no direcionamento dos pensamentos e da atenção, algumas vezes estruturando a sessão de estudo, mas também auxilia na atividade corporal.

Durante a fase formativa não presenciei nenhuma dessas atividades sendo abordadas abertamente em aulas de violino ou se transformando em ensinamentos explícitos ou mais precisos de como se estudar algo. Isto é uma lástima, pois nos últimos anos a aplicação de algumas maneiras de estudar provenientes de tais pesquisas e atividades vêm auxiliando consideravelmente no meu desempenho. Mesmo contando com a disponibilidade de material sobre essas pesquisas e atividades, ainda vejo uma falta de demonstrações práticas mais precisas da aplicação de certos conceitos ao violino. Entre a abstração desses conceitos e a música realizada existe todo um processo – erros, acertos, insights, experimentações, observações, ferramentas, percepções, estratégias – que geralmente não se revela, e é nesse espaço que a presente pesquisa se insere.

Entrar em contato com essas novas maneiras de estudar suscitou a vontade de pesquisar mais profundamente o efeito desses olhares emprestados na transformação de uma relação extremamente tensa com o Concerto de Tchaikovsky op. 35 para Violino e Orquestra, que foi criada em meu corpo em 2008/2009 quando estudava nos Estados Unidos. Seria possível transformar uma associação tão forte utilizando tais técnicas? De que maneira seria possível trazer elementos e ferramentas de fontes diversas para dentro do estudo do violino a fim de tocar o Concerto de forma fluida e prazerosa, refazendo as associações negativas construídas quando o estudei pela primeira vez? Esses outros conhecimentos e ferramentas são vitais? Importantes? Apenas ajudam um pouco? Faz-se, assim, necessário desvelar este processo.

Os objetivos dessa pesquisa abrangem alguns elementos, a começar com a experiência prática:

1. reestudar o Concerto para Violino de Tchaikovsky transformando uma memória muscular negativa construída anteriormente por meio de conhecimentos e maneiras de estudar provenientes de atividades auxiliares para músicos e pesquisas recentes, somadas às práticas tradicionais, buscando maior naturalidade na interpretação musical, capacidade de realizar suas demandas físico-técnicas com facilidade, controle e consciência corporal;

2. registrar todas as sessões de estudo ao longo do processo em forma de diário e publicá-las no blog Papo de Violinista (PICCAZIOORNELAS,2013)2, construindo assim um banco de dados sobre essas ferramentas e estratégias de estudo com literatura, autores, links e exemplos de aplicação, consolidando-o enquanto estudo autoetnográfico podendo, assim, demonstrar um processo real de aprendizado e sua devida fundamentação;

3. videografar o Concerto para Violino de Tchaikovsky com acompanhamento de piano ao final do período de estudo.

Em seguida, na análise da experiência prática:

1. verificar se os objetivos da prática foram alcançados;

2. verificar se esses conhecimentos auxiliares fornecem ferramentas suficientes para realizar esta preparação e a transformação da memória muscular negativa, e de que forma estas ferramentas podem ajudar;
3. verificar quais são os conhecimentos auxiliares disponíveis que oferecem uma maior perspectiva de ajuda aos músicos e como se dá sua colaboração, verificar se esses conhecimentos são auxiliares ou verdadeiramente mais fundamentais do que se possa imaginar.

A escolha desse projeto de pesquisa também visa responder uma pergunta fundamental: por que faço tanta força para tocar violino?

O capítulo Metodologia situa esta dissertação dentro do campo das pesquisas em Artes e delineia as principais linhas teóricas seguidas e influências que formaram o viés aplicado no estudo.

O capítulo Retrato Inicial apresenta uma parte de minha história, pois creio ser importante responder às perguntas: quem é essa pessoa, esse corpo onde foi estabelecida essa relação de tensão extrema? Por que essa pessoa decidiu empreender essa pesquisa? Apresento o momento e o contexto da criação da relação de tensão e os acontecimentos subsequentes que me levaram à acreditar que sua transformação era possível. Esse recorte mostra três momentos importantes de minha trajetória: os anos de estudo nos Estados Unidos, os anos de estudo na Itália e os anos de volta ao Brasil, já como profissional. Cada momento representa uma fase importante para essa pesquisa. A criação da relação de tensão entre meu corpo e o Concerto para Violino de Tchaikovsky se deu durante os anos americanos. Importantes conhecimentos violinísticos foram introduzidos e uma relação mais saudável com o estudo e o aprendizado foi formada no período em que vivi na Itália para estudar. De volta ao Brasil, a busca por técnicas de abrandamento da APM me direcionou também à saúde do músico e formas mais eficazes de estudar que incluíssem a ansiedade e o corpo.

O processo de estudo do Concerto para Violino de Tchaikovsky e os diários produzidos forneceram um material rico e vasto, abarcando resultados esperados e inesperados, sendo necessário dividir a experiência em mais de um capítulo. Na análise do processo foram identificadas três camadas de atuação: 1) estudo do violino e presença do corpo no estudo; 2) corpo e saúde geral; 3) rotina diária e organização do tempo. Essas camadas são mapeamentos de uma realidade una e indivisível, delineadas apenas para fins de entendimento da rede de relações evidenciada nessa pesquisa.

O capítulo Projeto Tchaikovsky aborda o estudo prático do Concerto e refere-se à camada estudo do violino e presença do corpo no estudo. Partindo dos dados fornecidos pelos diários de estudo, faço uma análise do processo apresentando os modos e o viés de estudo, dificuldades encontradas e apontando algumas linhas temáticas que foram se delineando ao longo dos relatos: ansiedade de performance, busca do aquecimento/estudo técnico ideal, dores e incômodos durante o estudo, influência da pandemia de Coronavírus e, a mais abrangente de todas, ferramentas e estratégias de estudo. Alguns insights muito importantes ocorreram durante o Projeto, a ponto de transformar o processo geral de estudo. Na ocasião da gravação do Concerto com piano eu havia chegado a uma execução fisicamente livre e consciente, propícia para um futuro desenvolvimento mais aprofundado de aspectos interpretativos do Concerto. Agora era possível.

O capítulo Dificuldades, Descobertas, Decorrências e Postagens no Blog trata das camadas de atuação corpo e saúde geral rotina diária e organização do tempo. A pandemia de Coronavírus afetou profundamente a vida e a rotina das pessoas, trabalhar em regime de home office sendo músico gerou alguns desafios extras, além de produzir efeitos na saúde física e mental. Houve um aspecto da pandemia (não necessariamente ruim) que foi importante para esta pesquisa: o confinamento colocou minha vida inteira dentro de casa e pude observá-la com seus elementos agrupados, basicamente, na sala. Essa observação permitiu entender quão estreitas são as relações entre os diversos aspectos e esferas da vida e evidenciou a principal dificuldade do Projeto: começar a estudar. Foram muitos os relatos, as investigações e tentativas de solucionar essa dificuldade ao longo dos diários e, no último mês do Projeto Tchaikovsky, as descobertas mais importantes de todo o processo ocorreram durante a leitura do livro “A Guerra da Arte”, de Steven Pressfield (2002). A primeira grande descoberta foi a identificação e mapeamento da Resistência, essa força invisível que se opõe a qualquer ação para empreender o que nos é importante ou benéfico, como estudar violino ou fazer atividade física. A segunda – e mais profunda – descoberta aconteceu após entender o conceito de artista formulado pelo autor. Ao me deparar com esse conceito descobri ao mesmo tempo qual era a crença fundamental que determinava meus comportamentos e minha identidade artística e com o quê eu poderia substituí-la para modificar os padrões de comportamento que considerava inadequados. Antes eu pensava, sem nem ao menos sabê-lo, que artistas tinham um brilho a mais, talentos excepcionais, um toque de Midas que faziam com que fossem especiais e, sob essa ótica, eu não me considerava uma artista. No conceito desvelado pelo livro, artistas são pessoas que sentem muito medo e insistem em seus ofícios independentemente dos resultados obtidos, pois sem isso não lhes é possível viver. Segundo essa ótica eu era absolutamente e completamente uma artista. As transformações decorrentes dessas descobertas aconteceram em todas as esferas da vida e afetaram profundamente a questão de começar a estudar: agora venço a Resistência com muito mais frequência. O capítulo investiga essas relações que vão desde a formulação da identidade artística até os movimentos do corpo. É importante ressaltar que essa pesquisa não pretende descobrir como onde o conceito antigo de artista foi formado nos subterrâneos de minha mente, isso é trabalho para ser desenvolvido junto a profissionais da área da Psicologia. O que essa pesquisa pretende, sim, é observar e analisar os efeitos dessas crenças, ou identidades, no Projeto Tchaikovsky e nos aspectos da vida relacionados à ele.

No mesmo capítulo comento a resposta do público às postagens dos diários de estudo no blog Papo de Violinista, que foi menor do que o esperado. Comento como a exposição do processo afetou o mesmo, busco razões para a quantidade de visualizações das postagens e comparo com experiência posterior de disponibilização de conteúdo com ferramentas de estudo em outro formato.

Nas Considerações Finais apresento os principais entendimentos adquiridos durante a pesquisa, pois houveram profundas alterações no modo em que estudo violino e que gerencio a rotina. Menciono a percepção ampliada sobre a extensão da atuação do corpo: tudo acontece no corpo, inclusive os pensamentos. Muitas relações que já haviam sido reconhecidas antes do início dessa pesquisa foram muitíssimo estreitadas durante esse processo, e o corpo é o campo onde todas elas acontecem. Estudar o corpo é estudar violino, cuidar do corpo é estudar violino. Também foi detectado um aspecto estrutural importante que figura como modus operandi tanto para tocar o Concerto para Violino de Tchaikovsky, quanto para estudar violino, quanto para lidar com a organização do tempo, saúde e rotina: o gerenciamento de energia.

Essa pesquisa é fundamentalmente sobre relações. Para onde quer que eu dirija a atenção há uma rede de relações a serem observadas, não apenas a relação entre meus músculos e o Concerto para Violino de Tchaikovsky. Há a relação com o corpo no estudo e com o corpo em geral, relações entre os aspectos físicos, mentais e emocionais, a relação destes com o estudo do violino em geral, as relações entre as diversas esferas da vida, as relações entre o macro e o micro, as relações entre as diversas camadas do ser. Todas essas relações atravessam o corpo, se manifestam no corpo, são o corpo.

Essas atividades são extra-curriculares no Brasil, mas algumas fazem parte da grade curricular de escolas de música em outros países, como a Psicologia da Performance e a Técnica de Alexander.

Escrevo o blog Papo de Violinista desde 2013. O conteúdo é voltado a músicos profissionais e estudantes e procura abordar assuntos variados dentro desse espectro, desde ansiedade de performance, técnica dos instrumentos de corda, questões físicas, aquecimento etc.

 

Foto da versão final corrigida encadernada com capa dura,
 cujas cores eu escolhi em homenagem à Accademia di Musica di Pinerolo.


Para acessar a íntegra dos diários de estudo que compõem o Projeto Tchaikovsky, clique aqui.

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