22/04/2019

COMO EU AQUEÇO - RACHEL BARTON PINE, parte 1

Não me lembro exatamente como, mas eu cheguei nesse vídeo aqui, do Parabéns a Você mais impressionante que eu vi na vida. 



Era Rachel Barton Pine, e eu virei fã inconteste. 

Alguns anos depois eu leio o nome dela na programação da orquestra onde toco, a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Imaginou minha euforia?

Ela veio em agosto de 2018 e subiu pela primeira vez ao palco do Theatro Municipal de São Paulo para tocar com a gente. Foi a solista da Serenata para Violino e Orquestra de Leonard Bernstein, peça em 5 movimentos, obra de um lado mais modernoso do compositor. Deu bis nas duas apresentações e foi tudo um deleite.

Rachel topou dar a entrevista com muita simpatia e foi muita conversa, bem mais além do aquecimento. O tempo todo ela conversou de modo franco e com o violino na mão - o Guarnerius Ex-Bazzini Ex-Soldat! - demonstrando tudo que falava. 

Eis aqui a primeira parte do papo que tivemos. Espero que vocês gostem tanto quanto eu gostei.


Rachel Barton Pine. Foto de Janette Beckman

Helena Piccazio - Qual é a primeira coisa que você faz ao abrir o estojo do violino?

Rachel Barton Pine - Afinar! Afino até para tirar foto. (risos) Às vezes o tempo é muito apertado para aquecer, sabe? Tem a viagem, aí tenho entrevistas, encontro com o regente em meia hora e só sobra um tempinho para estudar meu concerto. Mas o modo como eu estudo é diferente se eu ainda não toquei naquele dia. Eu começo com passagens mais líricas, não vou direto para as partes rápidas e extravagantes. Penso em todas as coisas que preciso fazer e a ordem na qual faze-las. É uma lógica para aquecer meus músculos, fazer o vibrato funcionar.

Helena - Então você pensa em usar a música para aquecer, tipo 2 em 1.

Rachel - Pode-se dizer que não se deve tocar repertório sem estar completamente aquecido, mas melhor ter tocado aquele ponto do que não ter encostado nele no dia! Então é uma concessão. Mas na maioria das vezes eu aqueço, e meu aquecimento preferido são escalas de duas oitavas. Eu diferencio manutenção de aquecimento, muita gente confunde as duas ideias.

Helena - Essa é uma das perguntas, porque tem gente que separa aquecimento de trabalho técnico e tem gente que pensa neles como a mesma coisa. Como é para você?

Rachel - Se você tem um estilo de vida onde você tem duas horas para estudar toda manhã e pode fazer seu trabalho técnico, isso seria a primeira coisa a estudar e é ótimo. Mas minha agenda não permite isso na maioria das vezes, então trabalho coisas técnicas em qualquer hora do dia, onde eu conseguir encaixar, o que é uma questão separada. Para aquecer eu gosto de fazer escalas de duas oitavas, porque nas escalas de três oitavas, se você parar para pensar, você só chega na parte alta do espelho nas cordas La e Mi, você nunca está lá em cima nas cordas Sol e Re. Eu amo as escalas de duas oitavas porque elas são super fáceis, não tem mudança de posição (um elemento a menos para se preocupar) e cobrem todo o espelho. Faço a escala e o arpejo correspondente. Na verdade meu professor Roland Vamos está para lançar seu livro de escalas depois de muitas décadas e as escalas de duas oitavas estão lá.
O livro de Roland Vamos
Começo com o primeiro dedo no La bemol - quando ensino isso pela primeira vez, claro que eu não começo com uma tonalidade bemol, mas sim com o Lá natural - usando arcos longos. E você vai subindo a cada meio tom até a sétima posição - e claro que temos o padrão de escalas começando no segundo, terceiro e quarto dedos, com todas as combinações de tons e meios-tons para essas diferentes tonalidades. Por isso que eu amo fazer esse exercício: primeiro porque me faz ter certeza que estou familiarizada com o espelho todo e em segundo lugar, ao subir as posições me asseguro de que estou realmente afinada em cada nota de cada posição, o que é ótimo para conhecer um violino novo. Antigamente, quando eu tinha que pegar violinos diferentes emprestados para diferentes concertos, isso era uma ferramenta excelente para achar todas as notas. Eu faço isso para um som básico, me asseguro de que meu arco está reto, que minha produção de som está homogênea no talão e na ponta, minhas mudanças de arco estão invisíveis, as mudanças de corda estão macias. Especialmente nos arpejos, tento sempre deixar o dedos da mão esquerda redondos e prontos antes e toco a corda dupla na mudança de corda, especialmente na volta, para evitar acentos.

Helena - E você faz tudo isso com vibrato?

Rachel - Sim, faço com vibrato. Para os estudantes é claro que eu recomendo sem vibrato, mas não é realmente necessário para mim, pois estou aquecendo meu vibrato junto com tudo. Geralmente faço um som básico e um vibrato básico, mas vario dependendo do repertório que estou fazendo. Por exemplo, se estou tocando Faurè, eu faço uma escala mais fofa, controlada, um som bem mais pálido, difuso. Se estou tocando Sibelius então faço fortíssimo com molto vibrato. Com Mozart uso um vibrato mais estreito. Às vezes nem mesmo é relacionado ao repertório que estou fazendo, apenas faço cores diferentes para mante-las no meu repertório, por assim dizer. Mas num dia normal faço um mezzo-forte básico, vibrato médio. E ao final dessas escalas sinto que posso tocar tudo. Sou muito sortuda porque tenho hipermobilidade (uma condição onde as articulações são ultra flexíveis, acredita-se que Paganini tinha isso). Pode ser uma maldição quando você é estudante, porque meus dedos dobravam o tempo todo, então eu tinha que trabalhar bem mais duro que meus colegas para estabilizar meus dedos, mas por outro lado eu tinha a vantagem de ser muito flexível e solta. Te conto uma história: quando eu estava na orquestra jovem, tinha um cellista bem bonito que sempre fazia massagem nas costas das garotas. Ele chegava em mim, começava a massagem e logo dizia “Ah, você não precisa!” (risos) Acho que isso era por causa da hipermobilidade. Todo mundo tem um corpo diferente, mas sempre presto muita atenção à ergonomia. Quando penso sobre o arco, tenho que pensar sobre a mecânica. Meu dedinho, meu cotovelo, meu ombro…

Helena - Então mesmo sendo super solta, você está sempre prestando atenção aos movimentos do seu corpo, se está tudo indo do jeito que você quer.

Rachel - Exatamente! E faço as escalas de duas oitavas porque elas são literalmente tão fáceis que posso pensar nessas coisas básicas. Muita gente faz cordas soltas, mas acho que não sou tão paciente. As escalas de duas oitavas pelo menos tem algumas notas!

Helena - Essa é a única coisa que faz ou tem mais coisa que você faz para aquecer?

Rachel - Não para aquecer, depois disso estou pronta pra tocar.

Helena - E quanto tempo leva?

Rachel - 10, 15 minutos. Não muito.

Helena - Você ainda faz trabalho técnico?

Rachel - Ah, sim! Na verdade trabalho mais as coisas que não estou tocando nos concertos do momento. Se não estou tocando nenhum concerto ou peças com pizzicato de mão esquerda, eu não quero que ele enferruje, então estudo um pouco disso aleatoriamente, para manter a habilidade. Ou harmônicos duplos, staccatos para cima…

Helena - Mas com o seu repertório, tem alguma coisa que você não está fazendo???


Rachel - Sim, se estou tocando um monte de Shostakovitch e Paganini, então me asseguro de estudar Bach. Quando pensamos em técnica, pensamos nos truques, como arco jetè (esse eu não tenho que estudar), aberturas diferentes, décimas… mas na verdade, refinamento de cor é ainda mais importante do que coisas para se exibir. Posso estar tocando algo contemporâneo, clássico ou barroco, mas nenhuma peça romântica com glissandos expressivos, então eu toco deliberadamente algo tipo Meditação de Thaïs ou outra peça do tipo, só para fazer uns glissandos bonitos. Glissandos realmente lentos e expressivos são muito importantes e você pode enferrujar nisso! Por outro lado, se estou tocando músicas super românticas e cheias de glissando, talvez eu estude uma sonata do Mozart para ter certeza de que posso produzir essa clareza de som, a limpeza e o brilho que não tem em um Glazunov.

Helena - Então você faz como aquelas pessoas do circo que mantém todos os pratos rodando ao mesmo tempo sem deixar cair, você tenta manter tudo em forma o tempo todo?

Rachel - Exatamente. Teve uma coisa engraçada, ocasionalmente tenho concertos com as 6 sonatas e partitas de Bach - é música muito difícil, obviamente, e de longa duração - e eu estava estudando todo dia seis horas. Aí aconteceu o fenômeno mais estranho porque, depois de estudar tanto, na semana seguinte tive que tocar o concerto de Tchaikovsky e me senti fora de forma! É porque toquei tanto Bach que nesse período não toquei nas posições altas, não fiz vibrato largo, glissandos, jetès, esse tipo de coisa. Foi aí que me dei conta “Oh, minha nossa, posso estar tocando muito, mas se eu não tocar certo estilo, ele pode enferrujar.” 

Helena - Isso explica muita coisa… Agora sobre resistência. Você não fica com os músculos tensos depois de tocar as seis sonatas e partitas de Bach ou os 24 caprichos de Paganini de uma vez?

Rachel - São duas coisas diferentes, a resistência mental e obviamente a física. Fico pasma de ver a quantidade de gente que consegue treinar para uma maratona hoje em dia. Parece que qualquer pessoa normal, se passar pelo processo de melhorar, melhorar e melhorar, no fim consegue correr a maratona. Todo mundo faz isso. Então você apenas tem que fazer um plano bem deliberado, começar seis a três meses antes da ocasião, aí chegar a 8km, depois 10km e assim por diante. Eu também trato meu corpo como um atleta, minha alimentação é estritamente vegana, tento evitar qualquer tipo de química, grãos refinados, pão branco, massa branca…

Rachel Barton Pine tocando o bis em concerto no
Theatro Municipal de São Paulo em 2018.
Foto de Erica Arakaki
Helena - Vegana e orgânica. 

Rachel - Sim. Comida limpa, como eles chamam. Nunca como açúcar e não tomo cafeína. Eu vejo meus amigos, se tomam muito café ficam tremendo, se não tomam o suficiente ficam com sono, então nunca na minha vida eu tomei café. 

Helena - Mas você tem tanta energia!

Rachel - Acho que é por isso! Porque fico bem consciente do quanto estou cansada, e aí trato de dormir. E se preciso de energia eu espero a adrenalina natural bater. É engraçado que meu marido também não toma cafeína. Isso é muito incomum, é engraçado a gente ter acabado junto.

Helena - Você faz exercícios ou coisas do gênero para manter a forma física?

Rachel - Sim, faço muito alongamento.

Helena - Sempre antes de tocar ou…?

Rachel - Não, não. Não é relacionado a tocar. Tem mais a ver com ficar sentada em aviões, dormindo em camas de hotel e coisas assim.

Helena - Eu gostaria de saber se existe diferença entre aquecimento para estudo e para performance.

Rachel - Hum! Eu não aqueço necessariamente cada vez que estudo, apenas na primeira vez daquele dia e geralmente em uma performance, quando chego na sala de concertos eu já estudei naquele dia. Então quando estou na coxia prestes a entrar no palco, não é realmente um aquecimento, mas um último estudo. Também depende da peça, faço algumas partes difíceis lentamente ou uma parte emocional com todo o sentimento para entrar no clima, isso realmente depende do repertório.


Helena - Isso é outra coisa que eu ia perguntar, se faz aquecimentos diferentes para repertórios diferentes, porque você toca tantos gêneros! Rock, barroco, Paganini, concertos românticos, de tudo. Existe essa diferença no aquecimento?

Rachel - Quando você está prestes a entrar no palco você já se preparou, então é mais sobre o que você quer se lembrar. Nem é tão físico, é mais mental e emocional, do tipo: “estou no estado mental certo certo para tocar essa música?” Então tem essas coisas que preciso lembrar, certas entradas ou algo sobre timing, certas dinâmicas… É realmente mais sobre memória, porque quando chego no concerto estou pronta para tocar.

Helena - E você também toca instrumentos diferentes, isso funciona para cada um deles?

Rachel - Sim, sim. Quero dizer, com a viola d’amore a maior parte do tempo você só fica afinando o instrumento. Se estou fazendo um concerto com o violino barroco minha maior preocupação é claro com o tipo de som, verificar de as cordas de tripa estão funcionando direito, me lembrando de certos gestos, certos golpes de arco, formas específicas.

De cima para baixo: os 3 primeiros são barrocos,
os 2 seguintes do período clássico
(ou transição) e o último é o arco moderno.
Encontrei a imagem nesse site aqui, bem legal.
Helena - Você sente muita diferença entre o arco moderno e o arco barroco?

Rachel - Ah, sim! Eu frequentemente uso o meu arco barroco no meu violino moderno porque acho que faz uma diferença imensa.

Helena - Essa foi uma das primeiras coisas que eu vi com você, o vídeo tocando o Ysaÿe com o arco barroco.

Rachel - Oh, aquilo foi um acidente! (risos)

Helena - Mas eu amei!

Rachel - Eu decidi colocar aquele vídeo no YouTube porque saiu bom e… bem, aquilo é algo incomum!

Helena - Tem tudo a ver com a história da peça.

Rachel - Sim. Bem, eu acho que muitas vezes as pessoas usam o arco moderno para Bach então decidi fazer o oposto. (risos)

Helena - Mas você tem que aquecer entre trocas de arco?

Rachel - Não. Para mim é como as pessoas que são completamente bilingues. Para mim o arco é tão confortável, apenas pego um e toco, depois pego outro. Ah! Um que não toco tão frequentemente é meu arco do período clássico. Com ele eu sinto que preciso me acostumar mais. O meu arco clássico é um arco Tourte do começo da transição para o moderno. Posso trafegar entre o Tourte e o barroco em performance, mas entre o Tourte e o arco moderno, a sensação para mim é muito estranha. Do período barroco também tenho um arco dos 1600, um arco curto para tocar Marini e outros compositores do começo do século XVII. Sendo curto, tem um som mais direto. Quando você ouve esse arco num violino barroco você entende porque muitas peças foram escritas para violino ou corneto - o violino vira um instrumento completamente diferente com esse arco, soa muito mais próximo do corneto. Mas ele é muito curto e com isso eu tenho que me acostumar, tenho que estudar tocar com o arco barroco curto, depois voltar ao arco barroco mais longo. E também me acostumei a tocar com o violino apoiado no braço para certo repertório.

Helena - Com ou sem queixeira?

"Garota Tocando Violino"
pintura de Orazio Gentilischi
Rachel - Não apenas sem queixeira, mas com o violino apoiado aqui embaixo, no estilo da Renascença. E às vezes a técnica usada não é tão importante para a arte, sabe? Nenhum compositor escreve “Toque esta peça com espaleira, ou sem a espaleira”. Ao tocar música barroca com o violino apoiado no braço o arco fica tão diferente! O braço do arco vem aqui para baixo e o movimento do cotovelo tem uma sensação completamente diferente para a mesma música. Obviamente fica mais difícil! Você não tem a ajuda da cabeça para encontrar o equilíbrio. Isso eu também tenho que estudar, as muitas transições indo daqui pra cá, se estou fazendo repertório diferente no mesmo concerto.

Helena - Então você não usa o arco do período clássico com tanta frequência?

Rachel - Geralmente quando uso é para concertos só de música clássica. Por exemplo, estou tocando com Nicholas McGegan na próxima temporada o concerto de Franz Clement, no qual Beethoven se inspirou para o seu concerto para violino. Vou tocar o violino barroco com o arco clássico para esta ocasião. E para os caprichos de Paganini no violino moderno eu sempre uso o arco clássico, porque torna tudo mais fácil! Deixa a expressão da música mais próxima desse estilo italiano do bel canto. Consigo usar o arco barroco no violino moderno para concertos barrocos com orquestras modernas e o equilíbrio fica bom. O arco clássico é tão leve que não consigo usa-lo para tocar um concerto de Mozart com uma orquestra moderna, o volume fica muito baixo. Não o uso tão frequentemente, o que significa que cada vez que volto para ele tenho que me acostumar de novo.

Viola d'amore.
Foto da página no Wikipedia
Helena - Você tem preparações diferentes para o corpo ou questões físicas, para estado mental e para o instrumento?

Rachel - Para a viola d’amore! Por causa de suas muitas cordas, a voluta com a caixa das cravelhas é muito longa e o instrumento é tão pesado! Aí tenho que cuidar do ritmo de estudo com muito cuidado. Se tenho que estudar por meia hora eu começo com 15 minutos, paro 10, estudo mais 15. E assim em 40 minutos estudei 30. Tenho que estar muito atenta para não me machucar.

Leia a parte 2 desta entrevista neste link

2 comentários:

  1. Minha nossa. Acho que esta foi a leitura por meio da qual mais aprendi sobre hábitos de estudo em música! Muito obrigado por compartilhar! Vou anotar os pontos importantes para não esquecer!

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