15/11/2018

DEZ DIAS COM A CAMERATA ABERTA

por Helena Piccazio

Participar do projeto promovido pela Sociedade de Cultura Artística que reuniu novamente a Camerata Aberta foi para mim uma experiência incrível. Dois dias de concerto no MASP e a gravação de um CD tiveram um gosto muito especial.

Camerata Aberta durante a peça Notes on Light, em concerto no MASP.

Considero de extrema importância a atuação da Camerata Aberta no universo musical brasileiro durante os cinco anos de sua existência como grupo estável. Esse grupo surgiu na EMESP/Santa Marcelina Cultura em 2010, com o objetivo de pesquisar e apresentar música dos séculos XX e XXI e consolidou-se como o único ensemble estável dedicado à este repertório no Brasil. Além de realizar concertos, seus integrantes tinham a responsabilidade de ministrar aulas na própria EMESP.
O grupo formado era grande, com pelo menos um representante de cada naipe de uma orquestra, mais o piano, o que permitia a apresentação de peças de formações e estilos variados. Os músicos que faziam parte da Camerata sempre estiveram entre os melhores de São Paulo.  

Infelizmente em 2015, o Governo do Estado de São Paulo cortou a verba da EMESP e a Camerata Aberta acabou enquanto grupo estável, não havia mais dinheiro para pagar os salários dos integrantes e continuar o projeto. Em seus cinco anos de existência, o grupo se apresentou em muitos lugares, no Festival de Campos do Jordão (São Paulo), no Concertgebouw de Amsterdã (Holanda), Americas Society de Nova Iorque (EUA), em Bruxelas (Bélgica), na Sala Cecília Meireles (Rio de Janeiro). Além de lançar o CD Espelho D’Água - Water Mirror pelo Selo SESC e ganhar o prêmio APCA em 2010 e 2012.

A Camerata era importante por ser o único grupo estável no Brasil a fazer o trabalho constante de divulgação da música do nosso tempo composta tanto fora do país quanto dentro dele. Quantas pessoas conheceram esse tipo de música através dos concertos dela? Quantos estudantes de música descobriram que esse mundo existe? Quantos compositores tiveram suas obras tocadas no Brasil pela primeira vez?

Eu adorava, era doida para fazer parte e quando abriu uma vaga de violino, fiz teste e passei. Só que, logo em seguida, a Camerata Aberta foi extinta em sua condição de estável.

A boa notícia foi o reencontro do grupo, agora em outubro de 2018, por conta do projeto idealizado em parceria pela EMESP, Cultura Artística e Selo SESC. Este projeto reuniu novamente a Camerata Aberta para a realização de dois concertos em São Paulo, no MASP e para a gravação de um CD, além de uma intervenção musical no Pavilhão da Bienal durante a exposição de arte.

Imagina a minha felicidade ao ser convidada para fazer parte do projeto!

Sempre gostei de música diferente. E sempre gostei de me envolver com sons fora da caixinha. Quando estudo e toco música contemporânea, sinto que estou expandindo meus horizontes técnicos e criativos. Os compositores pedem, através de suas notações, coisas que num primeiro momento eu digo “Isso é impossível!”, num segundo momento me endireito na cadeira e resolvo “Vou conseguir fazer isso sim, de qualquer jeito!”, e depois de quebrar a cabeça - e possivelmente meu arco - a coisa sai e a sensação é “Uau… não é que saiu, faz sentido e ficou bom?”. A exigência técnica é, muitas vezes, mais alta do que em música “tradicional”, talvez porque a quantidade de recursos sonoros seja maior. Existe o scratch sound, vários pizzicatos diferentes, glissandos diferentes, mudanças constantes de pontos de contato extremos, quartos de tom, etc.

Às vezes começo a estudar uma peça moderna sem saber se vou gostar dela ou não e ao estudar descubro um universo novo, que vou esculpindo, muitas vezes pela primeira vez. Neste repertório não existem ainda tantas tradições de interpretação, o que significa que tenho que criar uma, entender o que a música está dizendo, qual mensagem quero passar ao público, que história quero contar com aqueles sons diferentes. E assim como os sons são diferentes, o que eles contam muitas vezes também é. Adoro esse processo, e adoro ir para o concerto mostrar a música que acabei de descobrir. Depois, quando retorno à música tonal, trago de volta comigo a sensação de liberdade criativa, tocar Mozart fica mais fácil.


A MÚSICA

Foram quatro dias seguidos de ensaios que começavam de manhã e terminavam no final da tarde, lá no auditório da EMESP. O maestro Guillaume Bourgogne conduziu todos os ensaios e foi muito bom trabalhar com ele. Aliás, foi muito bom trabalhar com o grupo todo.

Vale a pena notar que a maior parte dos compositores é brasileiro e que metade são compositorAs (sim, Kaija Saariaho é uma mulher, uma senhora finlandesa muito exigente com seus trabalhos!)

Eu toquei em três das peças. Uma completamente diferente da outra, mas todas com inspiração em algum elemento da natureza.


Tatiana Catanzaro.
Foto encontrada aqui.
Ijareheni

      Quando ouvi a gravação no YouTube tive a impressão de que era uma música “pontilhista”, como aquelas pinturas onde as imagens são formadas com pontinhos e você só consegue ver a figura de uma certa distância. Atmosferas formadas de pontinhos de som que se transformam. Até que num determinado momento me deparei com a indicação “pizzicato com a unha”. Xiii… nunca tive unha grande. Deixei crescer a unha do indicador direito. Que aflição! Mas valeu a pena. Quando finalmente consegui tocar, saiu um pizzicato com um som diferente, mais metálico, mais pontudo. 
      A compositora Tatiana Catanzaro foi aos ensaios e nos falou um pouco sobre a peça. O nome é baseado numa lenda indígena e a peça descreve uma borboleta, desde quando ela sai do casulo até o bater de suas asas. O som passa a fazer mais sentido depois de ouvir isso. Ela usa muitos recursos interessantes, muitos sons abafados, muitos pizzicatos diferentes (não só o da unha), muitos sons atrás do cavalete, muitos ritmos calculadamente caóticos. E muitos recursos de timbre/ritmo que formam o que ela chama de meta-instrumento, quando os sons de dois instrumentos se misturam ou se conectam formando um outro som que parece um terceiro instrumento, ou parecendo um único.

Alexandre Lunsqui.
Foto encontrada aqui.
Telluris. Desert Rose

      Pensa num groove bem poderoso. Agora deixa ele meio inesperado sem tirar a pegada. Tipo isso. 
      A peça de Alexandre Lunsqui é a mais rock’n roll das três que toquei e descreve uma rosa do deserto. Telluris. Desert Rose é dividida em duas partes sem interrupção: I. Sand, Wind, Crystals e II. Blossoming
      A primeira parte tem dois elementos contrastantes como fio condutor: quintinas super agressivas em ponticello e notas bem longas e geralmente em piano, que crescem para explodir de novo nas quintinas. Tudo em perfeito 120 no metrônomo. O pulso não muda, mas você nunca sabe de onde virá a próxima explosão ou onda de quintina, o que dá ao mesmo tempo o esperado e a surpresa. 
      A segunda parte já é mais variada, o florescimento do material musical anterior se dá através de diferentes ritmos derivados da explosão que ouvimos antes, de sequências de pequenos glissandos, de passagens em piano, harmônicos, outros andamentos e acordes em bloco de todo o ensemble. Muita variedade, sem perder a conexão com o que veio antes, e sempre com groove.
      Mas uma coisa permeia a peça toda: quartos de tom! Depois que você fica estudando isso, meio tom parece uma distância enorme, e a experiência de estudar escala de sol maior, no dia seguinte, é muito engraçada!

Kaija Saariaho. Foto de Juha Törmälä.
Notes on Light

      A mais longa de todas as peças do programa: cinco movimentos de reflexões musicais sobre a luz. Sua presença, sua ausência, suas nuances. Essa música foi composta para cello solista e grande orquestra, e nós tocamos uma versão para ensemble reduzido. A solista foi a romena Diana Ligeti. Confesso que fiquei encantada com ela tocando, sempre completamente conectada com a música, não só com a sua linha, mas com todas. 
      Em Notes on Light as mudanças timbrísticas são de extrema importância para mostrar as imagens nos movimentos:
I - Translucent, secret
II - On fire
III - Awakening
IV - Eclipse
V - Heart of Light
      Kaija Saariaho é muito precisa na sua escrita para criar as atmosferas que deseja, a mistura dos timbres que ela pede realmente criam imagens. Diana sabia a cada uma das frases qual era a imagem a ser mostrada “Esse glissando é o eclipse, quando o planeta começa a se deslocar e a luz a reaparecer”. São coisas que ajudam muito a entender o porque daquele som naquele momento. Essa peça é recheada de glissandos de várias amplitudes e durações, degradês de timbres, crescendos e diminuendos enormes, mas o segundo movimento “On Fire” foge dessa curva, é uma sequência louca de semicolcheias com gingas enganadoras.


Foram dois concertos gratuitos no MASP com casa cheia, que contaram também com a participação do Quarteto Modigliani, da França, que tocou a peça Terra Memoria, de Saariaho. 

O povo da Camerata Aberta no intervalo da gravação da peça Notes on Light, de Kaija Saariaho.
Da esquerda para a direita: João Paulo Drumond, Carlos Freitas, Luis Afonso Montanha, Sérgio Kafejian,
Adenilson Teles, Luiz Ricardo Serralheiro, Ricardo Barbosa, Matthew Taylor, Guillaume Bourgogne,
Eduardo Gianesella, Karin Fernandes, Heri Brandino, Cassia Carrascoza, Paola Baron, Nikolay Genov,
Martin Tuksa, Pedro Gadelha, Diana Ligeti, Helena Piccazio, Silvio Catto, Adriana Holtz e Lídia Bazarian.
Foto de Walter Gentil.


A GRAVAÇÃO DO CD

Foto no estúdio Nacena logo depois de gravar a peça
Telluris. Desert Rose, de Lunsqui. Da esquerda para a
direita: Lídia Bazarian, Martin Tuksa, Cassia Carrascoza,
Alexandre Lunsqui, Guillaume Bourgogne, Helena Piccazio,
Silvio Catto, Pedro Gadelha, Luis Afonso Montanha,
Adriana Holtz, Adenilson Teles e Carlos Freitas.
Seguimos para os três dias de gravações no estúdio Nacena. Devo falar algo sobre Ulrich Schneider. Todo mundo chamava ele de Uli e era a voz que soava no estúdio para dizer a quantas andava a gravação e o que deveríamos fazer em seguida, o engenheiro de som. Seus comentários foram impressionantemente bons. Ele ouvia tudo, em todas as camadas, desde a técnica (incluindo coisas realmente minúsculas que nem a gente tinha notado), passando por questões de conjunto até o subjetivo, emocional. Quando eu crescer quero ouvir assim!

Este projeto foi uma experiência linda, com gente especial que toca muito bem, com um repertório que eu amo e que infelizmente é pouco tocado no Brasil. Mas ainda não acabou, tem um CD vindo por aí!!!


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