19/07/2018

ENRIQUE DIEMECKE - "O MAESTRO FEZ AULA DE VIOLINO COM SZERYNG."

Enrique Arturo Diemecke.
Foto do site dele.
Em abril de 2018 a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, onde toco, recebeu um maestro convidado para reger 2 concertos. No repertório, o Concerto para Piano n. 1 de F. Chopin e a 2a Sinfonia de J. Brahms.

Esse maestro era muito sorridente e muito bom. O mexicano Enrique Arturo Diemecke, diretor artístico do Teatro Colón e maestro da Orquestra Filarmônica de Buenos Aires, conquistou a orquestra toda. A semana com ele foi uma delícia! A maneira e o conhecimento com o qual ele trata a música e os músicos é inspirador, nos estimulou a tocar nosso melhor com um sorriso no rosto.

Durante os ensaios ele deu muitas indicações às cordas, sobretudo aos violinos. Essas indicações ultrapassavam conceitos estilísticos e falavam também de regiões do arco, articulações e coisas bem mais técnicas, que só um violinista saberia. Até que o Djavan Caetano, colega violinista, me contou: ele toca violino, e foi aluno do Szeryng. “Quê?!?!” 

Na primeira oportunidade fui falar com o maestro e perguntei se isso era verdade. Ele confirmou alegremente, e marcamos a entrevista. Convidei o Djavan para vir junto, e foi essa a nossa conversa:


Helena Piccazio - Me disseram que você teve aulas de violino com Henryk Szeryng.

Enrique Arturo Diemecke - Sim, correto.

Helena - E como é essa história?

Enrique - A história foi assim: eu nasci no México, de pais músicos. Os meus irmãos e eu, todos somos músicos. Tenho 2 irmãos e cinco irmãs, nada mais. E todos somos músicos. Nós vivíamos em uma cidade ao norte do México, e em um certo momento nos mudamos para a cidade de Toluca, mais ao centro. Aí estava um aluno do professor Szeryng, Enrique Espín Yepez, professor também, que começou a nos dar aulas e cursos. Quando Szeryng veio de visita, Yepez nos preparou para tocar para ele. Nosso professor organizava masterclasses, nos ouvia e nos preparava. Na ocasião da masterclass com o maestro Szeryng, este ficava com nossa partitura nas mãos fazendo anotações enquanto tocávamos. Quando o aluno terminava de tocar ele devolvia a partitura e dizia: “Bem, isso é para você. Agora falemos de música.”

Helena - Então ele fazia todas as anotações de arco, de dedilhado…

Enrique - De dedos, por exemplo, se via que o violinista tinha o quarto dedo fraco, escrevia ‘Fiorillo exercício n. 10’.

Helena - Que demais! Escrevia o que tinha que estudar para fortalecer o quarto dedo!

Henryk Szeryng. Foto: Clive Barda/ Pal Arena
Enrique - Para fortalecer a técnica. E sempre trabalhava muito a mão esquerda. Também trabalhávamos muito a mão direita, o arco. Ele tinha uma posição de arco muito especial, porque para começar, levantava o cotovelo, e a mão tinha que estar igual. Colocava o primeiro dedo aqui em cima para ter equilíbrio. Esse dedo é o que vai dar ênfase ao movimento do arco. E dessa forma em uma ligadura se toca assim, e com esse dedo se pode fazer o portato (canta e mostra). O cotovelo sempre para cima. Por que? Porque ele acreditava que era mais fácil ter o cotovelo para cima que para baixo, porque o peso do arco vai estar sobre o instrumento. Quando se está com o cotovelo aqui em cima, a pessoa pode controlar mais, pode levantar uma coisa de baixo para cima até aqui. Com o cotovelo para baixo, não se pode levantar muito. Assim a gravidade está a seu favor. Na mudança de arco no talão ele usava um pouco de movimento, um pouco só, para fazer uma troca que não se via nem se ouvia. Primeiro pressiona, depois relaxa. Na ponta, igual. Um movimento dos dedos. Não do pulso, mas dos dedos. E continua com o mesmo som. Ou seja, a velocidade do arco pode ser a mesma, mas a pessoa tem intensidade. E se vai fazer um crescendo, obviamente fica muito mais fácil depois. Se usa a pressão e a velocidade do arco, e o crescendo sai mais natural, mais intenso. Isso também ajuda a mão esquerda, para que possa vibrar. Esse é o manejo da técnica de arco. E tinha o estudo das escalas alla Carl Flesch. E sempre a mão tem que se adiantar à mudança de posição. (pega o violino do Djavan e mostra).

Helena - Sim, a mão começa a se mover antes da mudança de posição.

Enrique - Sim, antes da mudança, já começa a se mover pra frente ou para trás. Isso ajuda a mudança de posição. E uma das coisas mais importantes para estudar afinação é estudar em corda dupla fazendo pedal com a corda solta. No agudo também, porque aí não se acostuma o ouvido a subir a afinação. Essa é a ideia. Para estudar oitavas: as oitavas se estudam fazendo harmônicos (usando 1o dedo preso e 4o dedo no harmônico), porque a distância é exatamente a mesma, então os harmônicos acostumam os dedos a estarem sempre no mesmo lugar.

Helena - Verdade! Porque não se pode mudar o harmônico.

Foto que tirei durante a
entrevista.
Enrique - Não se pode mudar o harmônico. O harmônico sai ou não sai. Então se acostuma os dois dedos e o pulso à distância exata entre uma nota e outra. Sobretudo porque às vezes as cordas não estão tão bem. Por esse motivo ele sempre afinava usando arco pra cima, para escutar a vibração. Porque se fica tocando baixo-cima-baixo direto, não se escuta bem. E não usava espaleira.

Helena - Szeryng não usava espaleira?

Enrique - Não, Szeryng não usava espaleira.

Djavan Caetano - Mas usava algo?

Enrique - Às vezes, dependendo, mas não usava.

Helena - Ele tinha o pescoço curto?

Enrique - Não, normal. Como eu.

Djavan - É sabido que o Szeryng teve um início difícil na carreira dele. É verdade isso?

Enrique - Sim, foi difícil, e de fato teve problemas na sua carreira internacional. Não teve a mínima oportunidade que tiveram seus contemporâneos como Stern, como Heifetz, Milstein ou Oistrakh. Ele saiu da Polônia para estudar com Carl Flesch em Berlim, e de Berlim foi para a América, chegou primeiro em Cuba e depois esteve no México um período breve, veio para o Brasil, logo voltou para o México e aí se casou e se nacionalizou mexicano. Vivia em Mônaco e no México.

Helena - E quando foram essas aulas que o senhor teve com ele? Foi uma vez só em um verão ou mais?

Enrique - Foram muitos verões. Foram uns 5 verões que eu estive no México. Eu tinha ido estudar nos Estados Unidos, porque minha intenção não era ser violinista, eu queria ser regente, então para mim o violino era um instrumento para aprender e dominar para entender melhor a orquestra. Eu toquei em orquestra muitos anos e sei o difícil que é tocar com todo um conjunto, fazer com que 14 ou 16 violinos toquem exatamente igual, a afinação, os arcos, a parte do arco, se estamos juntos, se não estamos juntos, se é divisi, non divisi, e o companheiro de estante que esquece o lápis, o companheiro que não chega, o companheiro que te prega uma peça e te desafina o violino (risos), te rouba o arco, que às vezes desaparece… Tudo isso você aprende aí. E também toquei segundo violino quando era pequenininho, tocava num quarteto com meu irmão, ele era primeiro, eu era segundo. E minhas irmãs, uma viola e outra cello. Então tínhamos um quarteto de crianças e tocamos muitos anos em concertos até que chegamos às orquestras e começamos a tocar nelas já de uma maneira profissional. Comecei muito pequeno profissionalmente, com apenas 11 anos.

Helena - Que bonitinho!

Enrique - Não era uma orquestra juvenil, era uma orquestra profissional!

Foto do arquivo pessoal do Mto. Diemecke
Enrique - Aqui eu sou o que fala ao público e demonstra instrumentos, meu irmão e minhas irmãs estão mais atrás.

Helena - É uma família inteira de músicos! Você é o menorzinho?

Enrique - Sim. Fizemos o primeiro concerto com música clássica, Boccherini, Haydn, Mozart, quartetos de Beethoven. E aí, quando comecei a tocar em todas essas orquestras, comecei a estudar a trompa, aos 12 anos, porque eu gostava, é meu instrumento favorito. Meu pai não quis que eu fosse trompista. Mas eu queria aprender! Porque são os instrumentos mais difíceis: o violino e a trompa. Queria aprender porque as trompas sempre falham, porque tem tantas coisas tão difíceis, transposição, entrar piano, entrar forte, cantar, fazer conjunto. E então descobri que o companheirismo entre trompistas era muito bom, coisa que não existia entre violinistas (risos). Eu me sentia mais entre companheiros com os trompistas que com os violinistas. Nos violinos era mais competição sempre, quem tocava mais rápido, mais rápido. Já com os trompistas era “Como você faz essa passagem? Sim? Não? Perfeito. Vejamos, vamos tocar juntos, nos ajudar… sabe o quê? Te está falhando a barriga.”, e algum truque de afinação, essas coisas. Tocar em conjunto sempre é bonito, e as trompas tocam muito com as madeiras, com os metais e com as cordas. É o instrumento que mais está tocando com todos, é o mais versátil. E isso eu gostei.

Helena - E por quantos anos estudou trompa?

Enrique - A vida toda. Estudei na universidade, em Washington. Lá eu estudei violino e trompa, piano e regência orquestral.

Helena - Uau, um montão de coisas! E as aulas com Szeryng foram em que ano?

Enrique - 1971 a 1975, na Cidade do México.

Helena - E quantos anos de idade você tinha?

Enrique - Eu tinha uns 16, 17 anos. Essa foi uma das oportunidades da minha vida.

Helena - Musicalmente, o que ele dizia?

Enrique - Falamos muito da filosofia da música. Que o importante na música é que cada nota tenha um sentido. Coisa que meu pai também me ensinou, mas aplicar no violino é mais difícil porque você tem que pensar que cada nota tem um som. E por isso que era muito importante o solfejo, porque no solfejo você se dá conta que o dó tem um som especial, e que o ré tem outro, o mi, o fa, o sooool, la, si, dó. Cada nota tem que ter uma expressão, então basicamente era colocar letra na música. Szeryng falava: “Qual é a música? O que tem nela?” Por exemplo: reeeeee - fa - re - si - laaaa (canta o começo do concerto para violino de Brahms). E ele dizia “Não, não, não. Toque pensando nas notas” (canta de novo a melodia toda, bem mais expressiva).

Helena - Ele os fazia cantar?

Enrique - Sim! Se não consegue cantar, não consegue tocar violino.

Helena - Digo isso aos meus alunos!

Enrique - Ah sim?! haha

Helena - Mas eles nem sempre acreditam em mim.

Enrique - Se não consegue cantar, não espere que o violino toque sozinho, hein? O violino não soa sozinho.

Helena e Djavan em coro - Verdade.

Enrique - Nenhum instrumento soa sozinho. Necessita da música que está dentro da pessoa, e o instrumento é um amplificador, nada mais. E vocês são os amplificadores do regente. Então o regente tem que motivá-los, é o que penso que deveria ser. A pessoa faz o mesmo com o instrumento, você está pensando o tempo todo (e canta o começo do Concerto n.4 para violino de Mozart). Se você sente tudo isso, o violino vai responder. Tem que dominar o instrumento, o instrumento é a língua que temos que dominar na vida. Mas antes de dominar o instrumento, tem que dominar a si mesmo. Porque se não consegue dominar a si mesmo, não vai poder dominar o instrumento.

Helena - Verdade. E com a trompa, você teve algum professor assim significativo, como Szeryng com o violino?

Enrique - Sim e não. Porque com a trompa eu tinha a filosofia do violino. Então quando fui estudar nos EUA, eu tinha um quinteto de metais - 2 trompetes, trombone, tuba e trompa - e tínhamos aula de música de câmara com o primeiro trompetista da Sinfônica Nacional de Washington. Quando ele nos escutou, disse “Vocês estão muito bem! Quem ensaia vocês?” Meus amigos todos apontaram para mim: “Ele!”, porque eu os ensaiava. “E por que vocês querem aula comigo?” “Para nos dizer se vamos por um caminho correto ou não, sempre é bom ter uma opinião profissional.” E o professor disse: “Mas tem uma coisa que não entendo que me interessa muito, vocês tocam como se fossem um quarteto de cordas!”

Helena - (risos) Mas qual seria a diferença?

Enrique - O conceito, a filosofia.

Helena - Uau. E ele ouviu isso no som?

Enrique - Sim! Disse que tocávamos como se fossemos um instrumento de cordas, ou seja, um quarteto. Estávamos tocando juntos, sim, respirando juntos, fazendo um único som, etc, mas com um tipo de fraseado que só os instrumentistas de arco fazem, os outros não. Meus companheiros disseram: “Mas é que ele toca instrumento de cordas, é violinista também.” E o professor “Não! Sério?”. Mas eu aplicava as filosofias dos instrumentos, tudo que tem de bom em cada instrumento.

Helena - E todo esse conhecimento de como tocar instrumentos diferentes te serviu para virar um regente de orquestra, sim ou não?

Quarteto dos irmãos Diemecke. Enrique era o segundo violino.
Foto do arquivo pessoal do Maestro.
Enrique - Absolutamente sim. Porque as orquestras são tudo que aprendi em um quarteto de cordas. E o mais importante de aprender em um quarteto de cordas é tocar segundo violino, pois você faz o companheiro-cúmplice com o primeiro violino, que faz a oitava, a terça, vai no contratempo, se apoiam; depois com a viola, para que façam ritmos, para que façam a harmonia, para que façam o acompanhamento adequado; e depois com o cello, para que acompanhem a base com o ritmo oposto, a harmonia e essas coisas. Me dizia meu pai: o mais importante em um quarteto é o segundo violino - e eu era.

Helena - E depois de tocar em orquestras profissionais você sabia o que esperar de um regente de orquestra.

Enrique - Outro motivo pelo qual eu queria ser regente de orquestra é porque - não grave isso (risos) - minha mentalidade era diferente, eu queria ver como era reger com a mentalidade de um músico que motiva e se entrega com os demais músicos, e usa a orquestra como um instrumento. Nós não batemos no nosso instrumento, não o quebramos, não botamos a culpa no instrumento, sabemos que é o músico que tem que tocar bem. Então você tem que sempre estar estudando, é a atitude de ter o conceito e transmiti-lo para que possam fazer o conjunto, para que possam fazer a orquestra.

Djavan - Poderia dizer alguns nomes de violinistas importantes que você regeu?

Enrique - Bem, eu regi quase todos… Perlmann, Zuckermann, Joshua Bell, Szeryng. Estes, dos mais conhecidos. E também regi muitos jovens que estão por aí, Ray Chen, o excelente violinista australiano/chinês. Um montão de violinistas! Acho que regi quase todos os importantes, as irmãs Kavafian, Pierre Amoyal, Augustin Hadelich…

Enrique Diemecke rege Joshua Bell. Foto do site do Teatro Colón.

Helena - Eu sei que não é violinista, mas… Pierre Laurent-Aimard?

Enrique - Sim! Pianistas um montão. Cellistas, todos!

Djavan - Rostropovitch.

Enrique - Rostropovitch, Pierre Fournier, Lynn Harrell, Yo-Yo Ma, Tortelier.

Djavan - Sua ópera preferida?

Enrique - Minha ópera preferida? Ah! Neste momento é Pelleas e Melisande, Debussy. Eu vou faze-la agora em Buenos Aires, em agosto.

Helena - Muito obrigada pelo seu tempo! 

Enrique - Obrigada vocês!

A selfie obrigatória depois do concerto. Maestro Enrique Diemecke e eu.
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Para saber mais sobre o Maestro Diemecke, acesse este link.

Um muito obrigada à Djavan Caetano e Pedro Guida pela ajuda nesta entrevista!

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