01/01/2015

NOTA DE RODAPÉ PARA O ANO NOVO

Arnold Schoenberg, pintado por George
Gershwin (isso mesmo, o compositor
americano)
Resolvi que ia ler o Tratado de Harmonia do Schoenberg inteiro, alguns anos atrás. Cheguei na página 74. Tem 579.

Cada umas das 74 páginas valeu a pena, mas dessa nota específica eu acho que nunca vou me esquecer. São muitas as notas de rodapé do tradutor desse livro, e dá pra entender o boato de que a edição em português demorou mais de 10 anos pra ficar pronta, deve ter sido um trabalhão...

Estava eu no capítulo 4, O Modo Maior e os Acordes Próprios da Escala, e, no meio de um parágrafo da pág. 70 onde o autor/compositor questiona a razão pela qual alguém usa determinados elementos na escrita musical - se fruto de uma necessidade orgânica ou apenas porque é a tradição -, me deparei com essa nota de rodapé sobre o termo "desenvolvimento" (como em sonatas e sinfonias):

"Em português, certamente por intermédio e culpa dos tratados musicais em francês, base histórica do aprendizado musical brasileiro de harmonia e contraponto (e, pelo que pudemos até o momento verificar, os franceses, bons tradutores dos russos, são maus tradutores dos alemães, quer por uma questão de léxico, quer por serem povos que sentem o mundo de maneira muito diversa um do outro, em que pese o tronco germânico comum), traduziu-se o termo alemão Durchführung - fundamental para a compreensão da forma sonata - por desenvolvimento. Esse equívoco é, em extremo, nocivo à compreensão profunda dessa forma musical (e, daí, obviamente, à compreensão do concerto, do quarteto, da sinfonia etc., que são adequações da forma sonata). A palavra em alemão para desenvolvimento (ou evolução) é Entwicklung, algo essencialmente diferente. "Durchführung" significa, literalmente, "condução-através-de", ou seja: o tema (que é o herói do romance musical "desenvolvido"pela forma sonata) não se "desenvolve", mas sim - eis a questão! - é levado a aventurar-se por mundos e situações exóticas, novas e estranhas (idéia cara ao imaginário germânico) que já lá se encontravam. Conforme nos é ensinado quanto à forma sonata, depois do "desenvolvimento", vem a "reexposição" (algo já aqui contraditório, pois como é que pode ser "reexposto"o que foi "desenvolvido", ou seja, modificado?). A verdade é que o tema, após haver vivido a aventura épica do Durchführung, retorna à sua origem mas agora com toda a experiência vivenciada. Sem a clara compreensão dessa ancestral e típica idéia germânica, não é possível vivenciar a forma sonata em substância. A melhor tradução em português para Durchführung seria  Travessia. (Literariamente, é o que faz Riobaldo no Grande Sertão - e Guimarães Rosa efetivamente usa esse termo no fim do livro -, Ulisses na Odisséia, Os Portugueses n'Os Lusíadas, Dante da Comédia, Dom Quixote no livro homônimo etc. Todos esses realizam uma Durchführung, ou seja,  uma Travessia.) É o que o herói-tema realiza na forma sonata. Infelizmente, vamos continuar traduzindo Durchführung por "desenvolvimento", porque - parafraseando o próprio Schoenberg, obrigado a resignar-se em diversas circunstâncias parecidas - introduzir novos termos nesse estágio de evolução só viria trazer mais problemas. (N.T.)"
Capa da edição que tenho em casa

N.T. (Nota do Tradutor), Marden Maluf.


Informações sobre o livro:

HARMONIA
título original em alemão: Harmonielehre
autor: Arnold Schoenberg
Edição brasileira: Editora UNESP, 2001. Prefácio, tradução e notas de Marden Maluf.

O livro teve sua primeira publicação em 1922, e é consagrado à memória de Gustav Mahler.

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