09/04/2017

COMECE A AUDIÇÃO COM O PÉ DIREITO

por Dr. Noa Kageyama, publicado originalmente no blog do site The Bulletproof Musician

Usain Bolt. Foto tirada daqui.
Qual é a parte mais crítica de uma audição?

A primeira nota! No fim das contas, a primeira impressão é algo importantíssimo em uma audição, e você pode perceber mil coisas sobre um artista já na primeira nota. Infelizmente, isso também faz com que a primeira nota seja a mais difícil de uma peça. Com tanta coisa em jogo e tanta expectativa levando a este momento, a adrenalina está bombando e talvez você se sinta prestes a explodir.  

Ainda assim, quando o começo vai bem, a performance tende a continuar assim. Por outro lado, quando a primeira nota é temerosa ou tropeçamos já na largada, os músculos endurecem, os pensamentos viram uma bagunça de preocupações, perdemos o foco, e demoramos um tempo para nos recompor - isso se conseguirmos nos recompor em algum momento.

Então, como começar com o pé direito? Uma das chaves é ter uma Intenção Clara antes de iniciar.

Por que isso é tão importante?

Um dos problemas mais comuns no caminho dos músicos é a "paralisia por análise", quando começamos a pensar tanto sobre os aspectos técnicos de tocar que tensionamos e tentamos controlar ativamente os músculos. Desligamos a memória muscular e tentamos controlar manualmente nossos movimentos em tempo real, ao invés de permitir que eles façam o que já foram treinamos para fazer. Lembre-se deste artigo que fala que o nosso cérebro esquerdo (controle manual) processa informações sequencialmente, enquanto o nosso cérebro direito (memória muscular) processa informações simultaneamente permitindo uma execução superior de ações motoras complexas.

As Intenções Claras nos ajudam a alinhar a ação exata que desejamos executar, como no bilhar, onde você é obrigado a “cantar a bola" ou especificar exatamente qual bola vai pra qual caçapa antes de dar a tacada. Identificar o alvo antes de jogar é a regra no bilhar, mas também é uma boa prática de performance, pois é muito mais provável atingir um alvo claro do que um alvo vago, indefinido.

Como é uma Intenção Clara?

Outro dia um cliente meu que é ator mostrou algo que me deixou embasbacado. Nós estávamos falando sobre a arte de atuar, o ofício do ator e o processo pelo qual os atores lêem um texto e tentam dar sentido ao personagem baseando-se no texto - e como todas as respostas são encontradas nesse texto. Achei fascinante quão próximo isso é do que os músicos falam sobre estudar e ser fiel à partitura.

O que vou compartilhar com vocês é a interpretação linha-a-linha de Sir Ian McKellen da abertura de Ricardo III de Shakespeare. Dá para dizer que ele estudou o texto, entende as várias nuances das escolhas de palavras, fraseado, dicção, e provavelmente poderia falar sobre os pontos mais sutis durante horas. Com uma compreensão tão profunda deste material, ele não pode deixar de ter uma Intenção Clara em cada palavra, linha, frase e no discurso como um todo.

Antes de irmos ao vídeo, primeiro leia este trecho do monólogo de abertura e tente encontrar um sentido por conta própria. Minha professora de literatura da escola talvez se contorcesse ao me ouvir dizer isso, mas tenho que admitir que eu realmente não sabia o que fazer com o texto a seguir…

Agora é o inverno do nosso descontentamento 
Convertido em glorioso verão por este sol de York; 
E todas as nuvens que ameaçavam a nossa casa 
Estão enterradas no profundo seio do oceano. 
Agora as nossas frontes estão coroadas de palmas gloriosas. 
As nossas armas machucadas suspensas como troféus, 
Os nossos severos alarmes mudaram-se em encontros aprazíveis, 
As nossas terríveis marchas em compassos deleitosos, 
A guerra de rosto sombrio amaciou sua fronte enrugada. 
E agora, em vez de montar cavalos armados 
Para amedrontar as almas dos temíveis adversários, 
Ele pula como um potro nos aposentos de uma dama 
Ao prazer lascivo de um alaúde. 
Mas eu, que não fui moldado para jogos esportivos, 
Nem feito para cortejar um espelho enamorado. 
Eu, que sou rudemente marcado, e quero a majestade do amor 
Para me pavonear diante de uma musa furtiva e viciosa, 
Eu, que privado sou da harmoniosa proporção, 
Erro de formação por obra da natureza enganadora, 
Deformado, inacabado, enviado antes do meu tempo 
Para este mundo que respira, quando muito meio feito
E de tal modo imperfeito e fora de moda 
Que os cães me ladram quando passo coxeando perto deles. 
Pois eu, neste mole e flautado tempo de paz, 
Não tenho deleite no passar do tempo 
A não ser espiar a minha sombra ao sol 
E cantar a minha própria deformidade. 
E assim, já que não posso provar uma amante 
Para entreter estes justos e educados dias, 
Estou determinado a me provar vilão 
E odiar os prazeres ociosos destes dias.

Agora, clique aqui para ouvir a interpretação de Ian McKellen:
1. Clique em Enter
2. Clique em What does the opening speech of Richard III mean? (O que significa o discurso de abertura de Richard III?)
3. Clique em Explain the speech from the beginning (Explicar o discurso desde o início)

Um artista e professor bem conhecido que eu encontrei uma vez comentou que se alguém conhecesse a música bem o suficiente, não ficaria nervoso. O passeio de McKellen pelo texto de Shakespeare é uma ilustração do que acredito que ele quis dizer com isso. Conheça a sua peça bem assim, e sua mente terá tantas tarefas relevantes e úteis para se concentrar, que não haverá espaço para toda aquela tagarelice mental irrelevante que só aumenta a ansiedade, distrai, e no fim só atrapalha o seu caminho.

Resumo de uma frase

Desenvolva suas Intenções Claras, comece as performances com o pé direito, e você verá que o nervoso realmente fica em segundo plano.

______________________________

Dr. Noa Kageyama é um violinista que resolveu partir para a área da Psicologia da Performance e hoje integra o corpo docente da Juilliard School e New World Symphony em Miami, além de ser convidado das principais instituições de ensino de música nos EUA, ensinando músicos como tocar o seu melhor sob pressão através de aulas ao vivo, treinos e um curso on-line.

Tradução autorizada, por Helena Piccazio.

2 comentários: