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Uma selfie com o Maestro Jacques Delacôte. |
O Maestro Jacques Delacôte veio a São Paulo para reger a ópera Eugene Onegin, de P. I. Tchaikovsky, no Theatro Municipal, em maio e junho de 2015. Durante os ensaios ele nos divertiu contando algumas histórias. Ótimas, adoramos! Daí veio a ideia de entrevistá-lo.
Leia aqui a Parte 1 desta entrevista
CARLOS KLEIBER E MARIA CALLAS 2
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Maria Callas e Luchino Visconti durante sua primeira montagem da ópera La Traviata no Teatro alla Scala, em Milão, 1955. |
- Por favor, seja Você Mesma número 1. E nunca Maria Callas número 2.
Pelo amor de Deus!
E depois, estava tudo tão lento, lento, lento... que uma hora eu falei:
E depois, estava tudo tão lento, lento, lento... que uma hora eu falei:
- Não, assim não. Eu vou no meu tempo, se a senhora quiser vir comigo, tudo bem, senão eu vou no meu tempo mesmo assim.
O intervalo chegou, a atmosfera tava cheia de eletricidade, eu estava pronto pra explodir. Eu me virei - o Covent Garden é imenso - e lá na plateia tinha uma pessoa sentada, quieta como uma criança bem educada. Era Carlos Kleiber acompanhando meu ensaio. Ah! (com ternura) Eu fui até ele, me sentei ao seu lado e começamos a conversar. Ele me contou que também tinha tido problemas com essa mesma soprano - boa, muito boa, talentosa, mas... bom... E foi assim que nós viramos amigos, até a última carta que ele me mandou, pouco antes de morrer (ele me mostrou essa carta, trouxe consigo até São Paulo, cuidadosamente envolta num envelopinho plástico). Eu nunca-nunca-nunca ouvi uma música com a qualidade, o nível, como a que ele fazia. Tem uma gravação de La Traviata dele que é sensacional!
CARMEN QUE RI
- Olha, eles me colocaram a senhora X - nada contra ela - mas não é uma Carmen!
Ele respondeu:
E ele usou a expressão miscast, um erro de casting. Carlos me contou que ele e a senhora X já tinham feito Carmen com Zefirelli, e que foi um desastre total. Carlos a odiava, ela fatalmente não gostava dele. E ele terminou a carta dizendo “Ela é La Vache qui rit” Você sabe o que é isso? Uma marca de queijo francês, a vaca que ri! Ela parece com o desenho! Quando encontrei a senhora X no primeiro ensaio, quase explodi em risos, la vache qui rit... Essa Carmen que eu fiz foi desastrosa, uma direção horrorosa! Um horror do início até o fim.
TEM QUE LER
HP - Eu gostaria de saber quais são os livros que mais influenciaram a sua vida musical, os que o senhor mais gosta, os que são mais importantes.
JD - Tem o livro do Swarowsky, meu professor, infelizmente eu não sei se esse livro já existe em outros idiomas. Foi escrito em alemão, naturalmente, Swarowsky era austríaco. Um livro ma-ra-vi-lho-so.
HP - Qual é o nome do livro?
JD - Se chama Wahrung der Gestalt, vou tentar traduzir: Respeito da Forma. Algo assim. É o livro mais importante do Swarowsky.
Tem outro livro, igualmente magnífico, do Erich Leinsdorf, ex-chefe da Boston Symphony - um músico maravilhoso, uma cabeça igualmente maravilhosa, um saber gigantesco - que se chama The Composer’s Advocate, O Advogado do Compositor, o pinguim que gesticula. Ma-ra-vi-lho-so! No livro, Leinsdorf conta que trabalhou como assistente de Toscanini, e Toscanini conhecia Verdi pessoalmente. Ele fala ainda, sem citar nomes, de um maestro que rege o início do Requiem di Verdi como se fosse um mistério, lento, tudo lentíssimo, respeitando os pppp. É burrice, falta de conhecimento. Ele explica que Verdi escreveu 4 pianos, pppp, porque nunca confiou que os músicos italianos fariam piano o suficiente. Por exemplo, é bom saber disso! 1 piano só já está bom, não precisa ser essa coisa super misteriosa, não! Leinsdorf também fala da tradição barroca de escrever uma tercina e um ritmo pontuado ao mesmo tempo, explica claramente porque eles escreviam assim. Tem que encaixar. O ritmo pontuado é simplesmente um modo de escrever, deve soar uma tercina também. Ele conta a história da 4a sinfonia de Schumann (e canta), no movimento lento tem esses 2 ritmos diferentes ao mesmo tempo, e tinha um maestro famoso que exigia que a orquestra fizesse exatamente a tercina e o pontuado como escritos. Burrice, falta de conhecimento. É outro exemplo, interessantíssimo, tem que ler.
Outro livro que eu recomendo, é o do compositor e maestro Manuel Rosenthal, sobre Maurice Ravel. Tem coisas nesse livro que ninguém sabe! Um conhecimento perdido! Muito interessante, tem que ler esse também.
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Vladimir Horowitz, Nathan Milstein, Gregor Piatigorsky, Arturo Toscanini e Bernardino Molinari a bordo do navio Rex. |
HP - Assim?
JD - Assim. Nem “Bom dia, como vai? Então agora a gente faz tal coisa” Nada, apenas falou “Nós dois, nós somos dois zeros!” Essa história me faz lembrar... Imagina a filha do Toscanini, Wanda Toscanini - que era um dragão - casou com o Horowitz, e ele tocou uma vez só com Toscanini, quando era muito jovem. Uma vez, nunca mais. Eu não consigo sequer imaginar algum entendimento entre a fantasia, a imaginação musical fenomenal do Horowitz e o Toscanini. Que fantasia musical que o Horowitz tinha, impressionante! E o toque, as mãos que ele tinha, um dom da natureza.
HP - O senhor chegou a conhecê-lo?
JD - Não, não... Já faz talvez 15 anos, eu acho, que ele fez uma turnê e passou por Viena, e eu conhecia muito bem o diretor do Musikverein, que me contou “Quase fiquei louco com ele!” Durante o dia Horowitz dormia. E à noite começava a viver, tocava piano sem parar, e depois viver, viver, viver! Ia para restaurantes, viver, comer, beber, tocar piano se tivesse um piano. Horowitz falou uma vez que gostaria muito de tocar com Carlos Kleiber, com humildade total: “Eu gostaria muito de tocar com ele”.
HP - E não tocaram?
ABGEHAKT
JD - Não, não. Infelizmente. Bom, Carlos parou aos poucos, passo por passo até o fim definitivo. Eu lembro de uma carta dele dizendo “Eu não quero mais saber deles, nem deles, nem deles”. Eram orquestras. Ele usava uma palavra em alemão, típica dele: abgehakt. Essa história está Abgehakt, terminada, acabada de vez. Mas um tema também pode ser Abgehakt. E quando Carlos fez uma gravação sensacional do Freischütz, do Weber - Inacreditável, uma beleza! - as pessoas lhe perguntaram depois:
- Vamos fazer uma montagem?
- Não. Abgehakt.
E nunca mais regeu o Freischütz, o Freischütz estava morto pra ele.
JD - Sim, para a música. Ele disse “Esse tema, Freischütz, está Abgehakt. Não existe mais pra mim. Acabou”. Triste, mas pelo menos nós temos essa gravação dele, inacreditável. Os mais velhos da orquestra de Dresden que me contaram.
HP - Foi com essa orquestra que ele gravou o Freischütz?
JD - Foi, a Staatskapelle Dresden. Eles me contaram que era difícil trabalhar com ele. Uh!... ele exigia tanto! Assim como exigia de si mesmo. Carlos também fez um Rosenkavalier sensacional, mas infelizmente essa não foi com a Staatskapelle Dresden. Digo infelizmente porque a ópera Rosenkavalier foi escrita pelo Strauss para orquestra de Dresden! Foi criada em Dresden, no teatro Semperoper. Que pena! É uma orquestra tão brilhante, fenomenal. Eu nunca esquecerei certas palavras deles. Uma vez eu estava pronto pra começar o segundo ato e uma sombra vup! passou por mim. Era um músico atrasado. Eu falei “A-ha! O senhor está escapando?” ele parou, virou e disse “Não, Maestro. Eu quero absolutamente tocar com o senhor. Porque o senhor faz música boa.” Aaaahhh... Imagina! Ah, isso é gentileza gratuita. Nunca esquecerei. Parece pouco, mas eles não falam esse tipo de coisa pra todo mundo.
KLEMPERER
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Otto Klemperer. Getty Images. |
HP - E todo mundo caiu na risada, né?
JD - É!
EPÍLOGO - A BATUTA
- Tem mais uma coisa. Uma coisa que eu esqueci de te mostrar.
Ele abriu uma caixinha de madeira cheia de batutas e tirou uma, cuja cortiça já tinha se desfeito restando apenas uma fina vareta de madeira clara.
- Essa batuta foi do Bernstein.
Quase caí pra trás, e aquela varetinha ganhou vida e história: com essa batuta Leonard Bernstein regeu a ópera Fidelio em 1970, na comemoração de 200 anos da morte de Beethoven, no Theater an der Wien, em Viena.
- Depois Lenny* me deu de presente.
Jacques a usava, costumava reger com essa batuta. Mas um certo dia o tempo estava muito seco e a cortiça se desfez, restando só a madeira fina. Jacques a guarda até hoje na sua caixa de batutas, com muito carinho.
*Lenny é como Leonard Bernstein era chamado pelos amigos.
Documentário "Beethoven's Birthday: A Celebration in Vienna with Leonard Bernstein (1970)", sobre essa produção de Fidelio.
Documentário "Beethoven's Birthday: A Celebration in Vienna with Leonard Bernstein (1970)", sobre essa produção de Fidelio.
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Animal! Histórias deliciosas! Queria muito tomar uma cerveja com esse cara!
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